Seria mais dia comum, em que me programo para visitar um artesão em busca de novidades para a loja. Na minha rota estava uma parada na Olaria do Tatá, que já havia visitado algumas vezes para adquirir panelas e utensílios de barro.
Ao chegar lá, como de costume Tatá me recebeu na porta e me deixou a vontade para observar e separar peças das suas prateleiras. Logo percebi que uma luz linda entrava pelas janelas da olaria e, de longe, os alguidares me chamaram a atenção.
Por alguns instantes aquelas vasilhas circulares e cônicas com bordo virado me fizeram voltar no tempo. Havia ouvindo muitas histórias a respeito delas, histórias que me ensinaram a valorar o seu labor, a sua existência. Contaram-me que, antigamente, nelas lavavam-se roupas, louças e crianças, sovava-se pão, cortava-se carne e fazia-se licor. Fiquei sabendo que para a sua versão menor, e mais rasa, deu-se o nome de alguidarzinho ou “mata-fome”, peça utilizada como prato para servir alimentos.
E ali, entre vasos, gamelas, caçarolas e alguidares parei de contar o tempo, tomada pelas cores, texturas e formas da arte louceira de Tatá. Comecei a separa as peças que queria levar comigo e, ao manipulá-las, fiquei com vontade de conhecer mais profundamente a trajetória de Tatá.
Sempre admirei aqueles que encontram a sua paixão e, corajosamente, decidem depositá-la em suas mãos, revelando para fora uma arte que já existe dentro. Meu coração me pedia para acessar a história de vida deste artesão e, então, perguntei:
- “Você sempre trabalhou com o barro?”
E foi assim que a história se revelou, e o meu dia se transformou!
- “Eliatar Silva” é meu nome, aos 19 anos comprei um taxi e durante 10 anos ele foi o meu oficio. Em 1972 vendi o carro e comprei a minha loja no mercado, e lá se foram mais de 30 anos” – disse ele.
Depois, Tatá contou que nos dez primeiros anos de loja trabalhou revendendo peças de outros oleiros. Até que um dia seu filho mais velho lhe deu a ideia de fazer a própria produção. Ele resolveu ouvi-lo e, assim, iniciou o seu oficio de oleiro.
Com o tempo, Tatá contratou um oleiro auxiliar que veio da cidade de Tubarão, Santa Catarina, para ajudá-lo.
A conversa foi fluindo e nos conduziu para a sua fábrica, no segundo andar da olaria. Na escada, peças de barro cru e tijolos de argila “decoravam” o espaço enquanto aguardavam as mãos dos oleiros para serem moldadas.
E à medida que entrávamos, percebia que a luz penetrava ainda mais forte pelas janelas da olaria incidindo sobre as peças. Hipnotizada senti vontade de registrar tamanha beleza, pedindo permissão para fotografar o espaço.
A partir daquele instante o comum se tornou raro, e percebi que o momento seria único e mereceria ser contado.
Enquanto caminhávamos pela olaria, Tatá nos apresentava as etapas do seu processo de produção, revelando que a sua matéria prima é proveniente de cidades catarinenses: para as peças refratárias a argila é retirada de uma região entre Barreiros e Palhoça; e o barro vermelho vem de Canelinha.
Seguimos em frente, passando por um espaço onde as peças ficam acomodadas antes de irem para o forno aguardando a sua secagem natural.
Dirigimos-nos para a parte da moldagem onde conheci Leonardo, oleiro experiente que me mostrou, com uma riqueza de detalhes e uma precisão admirável, a sua arte de fazer tigelas em barro. Primeiro, ele dividiu os tijolos em blocos menores para, depois, fazer a moldagem. Minutos depois, a criação estava pronta nas mãos do criador.
Próximo dali avistei Mauro, o ajudante de oleiro que, em silencio, fazia recortes em luminárias com destreza e agilidade.
Rosalino não estava por lá, mas também foi mencionado na conversa. Ajudante de oleiro,é responsável pelo preparo do barro, uma etapa fundamental do inicio da produção. É ele quem mistura, amassa e passa o barro pela maromba para, depois, transformá-lo em tijolos.
Também conheci Adilson (foto ao lado), responsável pela etapa de acabamento das peças em barro, trabalhando nas etapas de pintura e vitrificação.
O “passeio” pela olaria e a conversa descontraída me encheram de coragem para fazer um pedido especial à Tatá. Pedi que ele nos mostrasse a sua habilidade com o torno e, tomando acento em frente ao seu companheiro de oficio, toou o barro nas mãos e, concentrado, começou a modelá-lo.
À medida que o barro escorregava com sutiliza entre os dedos o semblante sério de Tatá ia se transformando, dando lugar para sorrisos, olhares recheados de prosa.
Enquanto dava forma ao barro Tatá fez questão de dizer do apoio que recebeu de sua família durante sua trajetória como oleiro. Contou que Olivia, sua companheira há 30 anos, é quem pintava as peças e cuidava da loja ao seu lado e que acabou se afastando para cuidar de um familiar. E que a sua filha Tais atua na loja desde os seus 12 anos de idade, auxiliando nas compras, no atendimento aos clientes e na organização da fábrica. É ela quem pretende dar continuidade ao sonho do pai e, para tanto, fez questão de aprender cada etapa do processo de fabricação. Apesar de ser formada em educação física e estar concursada, dedica meio turno de seu dia à olaria, sua grande paixão.
Chegando ao final de nossa visita, Tatá confessou que por detrás de sua paixão pela arte louceira, vivencia dificuldades que vão desde a desvalorização do oficio de oleiro até a dificuldade de se encontrar profissionais experientes para o auxiliarem. Também mencionou a existência da concorrência entre o feito à mão e o produto industrial, que muitas vezes prejudica a manutenção do artesão.
Quanto ao futuro?
Tatá afirma sentir incertezas, temendo que a arte em barro possa não se sustentar por muito tempo. Mas, otimista, faz questão de reiterar a sua persistência em manter a olaria aberta e o seu sonho de pé.
Assim nos despedimos de Tatá, levando conosco a beleza do barro, uma matéria prima que vem da natureza e que, pelas mãos do oleiro, se permite ser moldada.
O que fica para mim?
Prefiro expressar em poesia:
Terra, barro,
barro e mãos,
massa, molde, criação.
Da natureza nasce a matéria-prima,
da necessidade humana a arte se cria.
Nascem vasos onde as flores serão mais bonitas,
E a arte louceira se cria em possibilidades infinitas.
O barro vira vaso, louça, alguidar,
a cerâmica vira arte,
uma arte cheia de histórias para contar.
Terra, barro,
oficio, arte, legado.
E o oleiro insiste em sua criação,
colocando nas mãos toda a energia de sua paixão.
Que a arte dos oleiros seja cada vez mais vista e concebida como herança e referencial cultural, como uma expressão da identidade de nosso povo.
E se você quiser conhecer um pouquinho mais desta arte que vem do barro, vista pelos olhos de uma menina, acesse o blog da Aninha. Lá ela irá te contar o que enxergou com os olhos e com o coração. Acesse: www.aninhapelobrasil.com.br/blog
Com carinho,
Ana Paula Dreher.
Texto e imagens de arquivo pessoal, de junho de 2013.
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